O art. 155 do
CPP estabelece que “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova
produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão
exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas
as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”.
O dispositivo processual penal
inicia-se de forma acertada ao prevê que o juiz formará sua convicção, no
momento de sentenciar, com base na prova produzida em contraditório judicial,
mas peca em deixar uma brecha para permitir que o magistrado se baseie também
nos elementos colhidos na fase investigatória, pois nesta há uma profunda
relativização das garantias fundamentais. Agindo assim, o legislador permitiu a
dissimulação do ato de condenar com base na prova judicial cotejada com a do
inquérito.
Segundo Aury Lopes Júnior:
Quando o art. 155 afirma que o
juiz não pode fundamentar sua decisão “exclusivamente” com base no inquérito
policial, está mantendo aberta a possibilidade (absurda) de os juízes seguirem
utilizando o inquérito policial, desde que, também invoquem algum elemento
probatório do processo (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 360).
O legislador não andou bem ao
permitir que os juízes pudessem utilizar o inquérito policial, fase esta
inquisitória em suas facetas, como fundamento de sentenças judiciais, pois abre
ao juiz o raciocínio de se por ventura não encontrar elementos suficientes no
processo, que justifiquem uma condenação, possa ir busca-los nos elementos
informativos produzidos no inquérito policial, situação esta violadora do
Estado Democrático de Direito, jogando por terra a garantia da própria
jurisdição e do contraditório.
Elucidativas as palavras de Fábio
Presoti Passos, que afirma:
A instrução preliminar como um
todo tem valor cognitivo relativo, uma vez que carece de confirmação de outros
elementos colhidos durante a fase da instrução processual, não podendo o
magistrado condenar o acusado baseado tão somente em elementos colhidos durante
a fase investigativa (PASSOS, 2012, p. 42).
Há casos ainda mais graves, como
decisões judiciais baseadas na confissão obtida em âmbito policial cotejada com
uma parca prova judicial. A jurisprudência tende a aceitar este tipo de prática
desde que a confissão obtida na fase investigatória seja confirmada por outros
elementos colhidos na fase judicial. O inquérito policial tem sua importância,
mas não poderá servir de base para justificar uma condenação, pois é evidente
que as garantias fundamentais em seu trâmite são relativizadas, diferentemente
do processo judicial, onde há o pleno exercício de tais garantias fundamentais.
No âmbito do tribunal do júri a
situação se agrava mais, pois há a prevalência da convicção íntima, onde o
jurado dará o seu veredito com base em qualquer fundamento, inclusive no
inquérito policial, e pior, pode ser que ele utilize apenas o inquérito como
base. Logo, no âmbito do tribunal do júri, o inquérito pode ser o fundamento
exclusivo para uma condenação, algo inimaginável num Estado Democrático de
Direito.
Constata-se
que na prática, o inquérito policial exerce forte influência no convencimento
dos juízes, pois como ele acompanha o processo, é inevitável que o magistrado
ao analisá-lo não venha a ser direcionado por suas conclusões.
Segundo Ada Pellegrini Grinover, há duas
razões para esse fenômeno:
Em primeiro lugar, porque quem
realiza o juízo de pré-admissibilidade da acusação é o mesmo juiz que proferirá
a sentença no processo (exceto no caso do Júri); em segundo lugar, porque os
autos do inquérito são anexados ao processo e assim acabam influenciando direta
ou indiretamente no convencimento do juiz (PELLEGRINI GRINOVER, 1996, p.
239).
Primeiramente, deve-se criar uma
fase intermediária, entre o inquérito e o recebimento da peça acusatória,
presidida por um juiz distinto daquele que irá sentenciar. Esse juiz seria
aquele que atua na instrução preliminar para autorizar ou denegar a prática das
medidas que limitem direitos fundamentais, sendo um juiz de garantias, lembrando
que este não atuará no processo, preservando assim a imparcialidade do
julgador.
Em segundo lugar, para que não haja
a contaminação do convencimento do magistrado julgador, deve ser determinada a
exclusão física do inquérito policial dos autos do processo, evitando
indesejáveis confusões de fontes cognoscitivas, contribuindo para a total
originalidade do processo penal, evitando a contaminação do juiz pelos
elementos obtidos na fase pré-processual.
O principal objetivo é a originalidade
do processo penal, pois não há produção probatória na fase das investigações
preliminares, não sendo atribuído a esta fase a aquisição de provas. Na fase
preliminar apenas deve ser colhidos elementos determinantes do fato e da
autoria, em grau de probabilidade, com o fim de justificar a ação penal. A
produção da prova reserva-se para a fase processual, cercada por todas as
garantias ao exercício da jurisdição (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 362).
A originalidade é alcançada,
principalmente, porque se impede que todos os atos da investigação preliminar
sejam transmitidos ao processo – exclusão de peças –, de modo que os elementos
de convencimento são obtidos da prova produzida em juízo. Com isso evita-se a
contaminação e garante-se que a valoração probatória recaia exclusivamente
sobre aqueles atos praticados na fase processual e com todas as garantias
(LOPES JÚNIOR, 2012, p. 362).
Desta forma, com a exclusão do
inquérito policial dos autos do processo, evitar-se-á uma condenação baseada em
meros atos de investigação, desta forma reforçando a função endoprocedimental
da fase das investigações preliminares. Os elementos fornecidos pelo inquérito,
à exceção das provas técnicas e das produzidas através do incidente antecipado
de provas (ante o juiz), não devem ser valorados na sentença e nem servir de
fundamento para uma condenação.
Segundo Luigi Ferrajoli (1997, p.
103), a única prova válida para uma condenação é a “prueba empírica llevada por
una acusacíon ante un juez imparcial, en un proceso público y contradictorio
con la defensa y mediante procedimientos legalmente preestablecidos”.
É a função endoprocedimental dos
atos do inquérito, no sentido de que sua eficácia é interna à fase, para
fundamentar as decisões interlocutórias tomadas no seu curso. Para evitar a
contaminação, o ideal é adotar o sistema de eliminação do processo dos atos de
investigação, excetuando-se as provas técnicas e as irrepetíveis, produzidas no
respectivo incidente probatório (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 363).
Concluindo, os
atos da investigação preliminar devem ser considerados meros atos de
investigação, tendo uma limitada eficácia probatória, pois a produção da prova
deve reservar-se para a fase processual.
Nisto, reforça-se a função endoprocedimental dos atos do inquérito, pois
a sua eficácia é interna à fase, para fundamentar as decisões interlocutórias
tomadas no seu curso e justificar o ingresso da ação penal e o seu respectivo
recebimento pela autoridade judicial. Sendo assim, o mais aconselhável é adotar
o sistema de eliminação do processo dos atos de investigação, excetuando-se as
provas técnicas e as irrepetíveis, produzidas no respectivo incidente
probatório. Desta forma, preserva-se a imparcialidade do julgador e,
principalmente, a originalidade do processo penal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERRAJOLI, Luigi. Derecho e
Razón. Teoria del garantismo penal. 2 ed. Madri: Trotta, 1997.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito
Processual Penal. 9. ed. . rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.
PASSOS, Fábio Presoti. A
participação do investigado na instrução preliminar como manifestação dos
direitos fundamentais. Belo Horizonte: Dissertação de Mestrado – Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito,
2012.
PELEGRINI GRINOVER, Ada.
Influência do Código-Modelo de Processo Penal para Ibero-América na Legislação
Latino-Americana. Convergências e Dissonâncias com os Sistemas Italiano e
Brasileiro. In: O Processo em Evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
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